Câmara Inversa

domingo, janeiro 22, 2006

O Coração é Traiçoeiro Acima de Todas as Coisas


O escritor JT Leroy (foto) tinha uma história impressionante, forte demais pras sessões de telefilmes típicas do Super Cine. Maltratado desde criança pela mãe, prostituído e colocado sob a custódia do estado aos 14 anos. Aos 16 anos, seu psiquiatra, impressionado com o que ouvia, pediu que ele escrevesse sobre as suas experiências.

Pelo menos era o que todos acreditavam e divulgavam até mais ou menos uma semana atrás, quando sua verdadeira identidade, protegida pela defesa de que tinha uma aparência andrógina mesmo (que era completada por peruca loira e óculos escuros), foi revelada em reportagem do "New York Times". Trata-se, na verdade, de Savannah Knoop (foto), uma estilista que ninguém conhece.


Mas não era ela quem escrevia os livros de Leroy. A reportagem, ainda que não fornecesse provas disso, defendia que poderia ser uma mulher, chamada Laura Albert, que tentara (em vão) o sucesso durantes anos com sua banda punk. Tudo indica que a polêmica ainda deve se alongar. Sexta-feira passada, mais por coincidência do que por oportunismo, chegou ao cinemas a adaptação do segundo livro de Leroy/Laura/sei-lá-quem, Maldito Coração (foto), de Asia Argento, atriz e filha do cineasta italiano de filmes de terror B, Dario Argento.


Os livros de Leroy são de difícil adaptação para as telas. Sua escrita é de uma fluência e poesia raras, o que torna a adaptação de Argento um êxito impressionante. Tratando de um tema espinhoso, ela consegue fugir a todos os clichês que o espectador poderia esperar, principalmente porque demonstra total controle sobre a linguagem cinematográfica, produzindo cenas surrealistas ao mesmo tempo estranhas e cativantes.

O título original do segundo livro ("The Heart is Deceitful Above All Things") ilustra exatamente o karma dos personagens de Leroy. Tanto dos que ele criou quanto daqueles de que se aproximou na vida real (o filme, por exemplo, conta com um elenco de famosos, incluindo Peter Fonda, Winona Ryder e Michael Pitt), contando a "história" de sua vida e afirmando ser portador do vírus HIV.

Dentre esse grupo de famosos, encontra-se, também, Gus Van Sant (diretor de "Elefante", "Last Days" e "Um Sonho Sem Limites", dentre outros), responsável pela arte da capa do primeiro livro de Leroy, Sarah (foto), já lançado comercialmente no Brasil.


Sarah é o nome da mãe do personagem principal, ao mesmo tempo principal influência e algoz dele. As histórias dos livros de Leroy são ambientadas no sul dos Estados Unidos, em atmosferas marcadas pela religiosidade fanática (quase um personagem dos seus livros) e pela promiscuidade da vida de uma parcela da população americana, que numa linguagem perjorativa no país, é apelidada de "white trash". Como se não bastasse tudo que o tema espinhoso desse embate pudesse render, Leroy (vou continuar chamando ele assim até que o responsável se apresente) vai além, ao trabalhar as fronteiras que definem a sexualidade nascente, no caso a do garoto que se prostitui como uma garota. Como afirmado anteriormente, de uma forma que foge inteiramente ao vulgar, numa magnífica prosa poética de teor agridoce que captura toda a loucura e fanatismo de um grupo social.

Se Sarah foi saudado por muitos (eu, inclusive, me incluo aí) como uma das mais importantes obras literárias dos últimos anos, o balão do personagem-escritor na vida real já entrou para história da literatura como um dos melhores golpes de marketing já feitos. Se o coração é traiçoeiro acima de todas as coisas pros personagens dos livros e, por extensão, para nós na vida real, nesse caso, foi muito mais para aqueles a quem Leroy se aproximou. E aí certamente não se incluem os leitores mais do que satisfeitos.