Câmara Inversa

quarta-feira, agosto 30, 2006

TV e Construção da Realidade

"Traços do Gênero Fantástico num Telejornal" - por Daniel Lopez


O sucesso conseguido pela televisão, desde sua origem, está calcado, entre outros fatores, no seu caráter “fantástico”, ou seja, o poder de criar uma realidade particular, um mundo próprio, imaginário e mágico, em que nem sempre vigoram as regras e valores do mundo externo.

Operando através do caráter “mágico” da imaginação (Sartre, 1936), a televisão mediatiza a relação entre fato e espectador, em um processo em que não raro há subjetividade e conotação. Segundo Ernest Gombrich (1969), entre a representação e a realidade externa só há ilusão. É neste contexto que se pode ressaltar também as “hesitações” que acontecem no telejornalismo, em que a forma como as informações são mostradas e organizadas pode produzir um “efeito de real”, mas nem sempre refletir os fatos em sua forma mais consistente.

Eliminando distâncias geográficas e sócio-culturais, a TV pode levar o mundo até a casa do telespectador, permitindo que ele assista, ao vivo, a eventos históricos como guerras e viagens espaciais. Acompanhados por milhões de pessoas, os noticiários são capazes de mobilizar toda a sociedade em torno de movimentos políticos, como uma campanha pela presidência do país. Mas também dão espaço exagerado a fatos irrelevantes, alguns deles ligados a figuras da própria televisão, como o nascimento da filha de uma apresentadora. Mortes de personalidades, por sua vez, fazem com que a cobertura abandone a frieza jornalística para investir na emoção. Afinal, o telejornalismo também precisa contribuir para a conquista de audiência. Desse modo, cada telejornal oferece ao telespectador apenas um “mundo possível”, entre os muitos que poderiam ser mostrados.

Por outro lado, partindo do princípio que a notícia possui características da narrativa, considera-se, aqui, a premissa de que ela também pode produzir efeitos de real, isto é, que é capaz de constituir o real. A partir do momento em que a notícia busca conferir uniformidade aos micro-aspectos do fato, produz-se um enredo, entendido como campo de problemas de uma experiência. Sendo a notícia, portanto, um enunciado ou uma seqüência de enunciados narrativos, torna-se possível a produção de notícias que caminhem em direção ao Fantástico.

Toma-se como Fantástico a definição de Tzvetan Todorov (1939): “um texto que obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados.

Esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e, ao mesmo tempo, a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra.”

Todorov defende ainda que o “fantástico é um caso particular da categoria mais geral da ‘visão ambígua’” (idem, 1939: 39). É na hesitação do leitor-espectador perante a veracidade da informação recebida que reside o Fantástico. Assim, por permitir este posicionamento ambíguo, a televisão aparece como um meio em que o gênero em questão se faz presente amiúde.

Como a mídia elabora sua abordagem dos fatos ocorridos, em um determinado dia, ao redor do mundo? Qual a idéia que a mídia passa ao espectador sobre seu poder de abarcar todos os acontecimentos do dia, e de decidir quais são os mais importantes? Quais os recursos discursivos utilizados pelo telejornal para legitimar seu poder “onisciente”? Qual o impacto social do discurso midiático, através de sua leitura do mundo?

Com frases do tipo “agora você verá o que aconteceu de mais importante no Brasil e no mundo...”, o Jornal Nacional passa a idéia de que possui o poder de analisar TODOS os fatos acontecidos ao redor do planeta. Este poder onisciente remete a ficções como O Aleph, de Jorge Luís Borges; 1984, de George Orwell; e O Panóptico, de Jeremy Bentham.



Em O Aleph, Borges descreve uma esfera de dois ou três centímetros de diâmetro, mas “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, visto de todos os ângulos”. A esfera estava num porão escuro e brilhava, mas nem todos conseguiam ver o universo do Aleph. No pequeno quadrado da televisão, vemos os apresentadores do Jornal Nacional com o globo terrestre a suas costas.

George Orwell, por sua vez, constrói no romance 1984 uma metáfora pessimista do pós-guerra para o futuro da humanidade, dominado pelo totalitarismo. Para garantir a manutenção do Partido, os setores mais importantes da sociedade eram controlados pelas Teletelas, sempre sob a onipresença do Grande Irmão. As teletelas não somente mostravam imagens como monitoravam as pessoas, sendo quase impossível escapar de seu escrutínio. No cenário de o Jornal Nacional, há uma infinidade de telas, onde programações do mundo inteiro são monitorados por incansáveis jornalistas.

Ainda, Jeremy Bentham propôs uma arquitetura para prisões que ficou conhecida como o panóptico, literalmente “ver tudo”. Era uma prisão em que as celas ficavam dispostas de forma circular havendo uma torre no centro, de onde se podia ver todos os presos. Para dizer “agora você verá o que aconteceu de mais importante no Brasil e no mundo”, o emissor deve estar situado na torre central do Panóptico, e as celas compreenderem o mundo inteiro (como em O Aleph).

Assim, a onisciência do telejornalismo consiste em uma ilusão: até o mais amplo dos noticiários transmite um volume restrito de informações – irrisório se comparado, por exemplo, ao número de notícias publicadas por um jornal diário ou por uma revista semanal.

Embora esse processo de seleção seja uma constante do jornalismo, na TV ele aparece de forma mais acentuada, em virtude do tempo escasso. Um bom exercício para mostrar esse aspecto limitante é gravar os telejornais da noite, transmitidos por diferentes emissoras, e compará-los aos jornais do dia seguinte. Todos os telejornais deram as mesmas notícias?

Todas as notícias transmitidas pela TV saíram nos jornais? E quantas notícias relevantes foram publicadas pelos jornais, mas não foram transmitidas pela TV? O noticiário da televisão não esgota a necessidade que temos de conhecer o que acontece à nossa volta – constitui apenas uma das maneiras de fazer isso.

Neste contexto, cabe ainda a pergunta: se nunca tivéssemos visto uma televisão e, de repente, um avião deixasse cair um aparelho em uma pequena vila? Barbara Brenner (1990) nos dá uma visão interessante sobre esta hipótese em seu livro The Magic Box. Em seu conto, todos ao habitantes da vila ficam maravilhados com o estranho aparelho que cai do céu. Rapidamente, os homens esquecem de arar o campo, as mulheres deixam seus afazeres e as crianças faltam as aulas: todos estão grudados na “caixa mágica”. A cidade se torna um caos. Até que um pequeno garoto finalmente desliga a televisão. A vida volta ao normal e os cidadãos percebem que esta pequena caixa tem poderes inestimáveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TELEVISÃO, “a quarentona aniversariante”. In: Jornal O Estado do Paraná. Curitiba, 16 de setembro de 1990.
ARBEX, José. O Poder da TV. São Paulo. Editora Scipione LTDA.
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico, Autêntica, São Paulo: 2000.
BORGES, Jorge Luís. O Aleph, Globo, São Paulo: 1999.
Boullier, Dominique et Josée Betat. La conversation télé. Rennes,
LARES, 1987.
BRENNER, Barbara. The Magic Box. Bantam Books for Young Readers: 1990.
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade, 2ª edição, tradução de Guy Reynaud, R.J., Paz e Terra, 1982.
Chartier, Roger. História Cultural entre Práticas e Representações. Lisboa: Edições 70, 1991.
COSTA, Rosa Maria Cardoso Dalla. Le rôle des journaux télévisés: étude de la réception chez les ouvriers de la ville de Curitiba, au Brésil. Tese de doutorado. Saint-Denis: Université Paris 8, 1999.
___________. O telejornalismo brasileiro: do fantástico ao espetacular. Anais da XX Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba, SBPH, 2000, p. 29-35.
GOMBRICH, Ernst. Art and Illusion, Princeton Univ Press, New Jersey: 1969.
LOPES, Maria Immacolata. “Estratégicas metodológicas de pesquisa de recepção”. In: Intercom Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo, vol. XVI, n. 2, jul/dez. 1993.
MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão – a vida pelo vídeo. Ática, São Paulo: 2000.
ORWELL, George. 1984, Companhia Editora Nacional, São Paulo: 1957.
SARTRE, Jean Paul. A Imaginação. Difusão Européia do Livro, São Paulo: 1964.
SODRÉ, Muniz. A Ficção do Tempo. Vozes, Petropolis: 1973.
___________. O Monopólio da Fala: função e linguagem da TV brasileira, Vozes, Petrópolis: 1978
SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros, São Paulo: Cia. das Letras, 2003 .
TÁVOLA, Artur. Comunicação é Mito, R.J., Nova Fronteira, 1985.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Perspectiva, São Paulo: 2004.
XAVIER, Ricardo e SACCHI, Rogério. Almanaque da TV. 50 anos de memória e informação. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
ZERO HORA. Encontro discute o futuro da televisão. Porto Alegre, 31 mai. 2000, p. 40.

3 Comments:

  • Realmente, a caixa da televisão transformou-se numa fonte inesgotável de informações. Basta ligá-la e temos o mundo a nossa frente. A televisão veio completar a ilusão prometida pelo rádio. Antes, as novelas eram transmitidas por atores com boas dicções e que, através de suas performances, atiçavam a imaginação dos ouvintes.
    A televisão chegou em preto e branco, ainda sem a tecnologia necessária para mostrar os erros da produção. Com os seus primeiros artistas foi evoluindo, tanto na parte do entretenimento quanto no jornalismo, que foi amadurecendo e hoje é transmitido de forma muito rápida, devido à análise de sua importância. A evolução das comunicações exigiu um maior esforço dos comunicadores. Hoje, após um dia trabalhoso, o cidadão procura por notícias mais rápidas e objetivas. Não resta a menor dúvida da importância desse meio de comunicação que revolucionou o mundo...

    By Anonymous Anônimo, at agosto 30, 2006 8:11 PM  

  • Caro moderador deste fantástico "Câmera Inversa",

    Há um universo de comentários contidos, que não querem calar, mas tempo é um fator relevante e absoluto. Ora nos beneficia, ora nos faz sentir tolidos da liberdade que tanto necessitamos para expressarmos nosso lado "do avêsso", ou seja, nossa alma descoberta.
    Não obstante, quero tão somente comentar os primeiros parágrafos de sua riquíssima observação sobre "meios de Comunicação, fazendo menção à indispensável TV NOSSA DE CADA DIA.
    Tzvetan Todorov, nos idos de 1939 abordava a explicação natural e a sobrenatural do acontecimentos evocados. Como ele mesmo afirmou: "Fantástico é um caso particular da visão ambígua".
    A veracidade da informação recebida reside no Fantástico.
    Sobre frases como "mais importantes acontecimentos no Brasil e no mundo", vale ressaltar que o que se vê e se lê HOJE, é extremamente mais fantástico que as ficções como o Aleph, de Jorge Luís Borges, de George Orwell e O Panóptico, de Jeremy Bentham.
    Aguardem um breve stop, e vocês poderão conferir.

    By Anonymous Anônimo, at setembro 04, 2006 12:22 PM  

  • Continuação do Comentário de Rosângela:
    Não admitimos, mas somos literalmente manipulados pela TV. Lógico que há diferentes aspectos, de acôrdo com o nível intelectual de cada tele-expectador. Vale ressaltar que não fôsse todo um esquema muito bem elaborado, teríamos uma visão mais real da gravidade OU NÃO, dos fatos. Quanto ao "Fantástico", o passado deixa muito à desejar, mesmo as ficções. Observe uma notícia sobre o 11 de Setembro, Saddam, Bin Laden,(Oh, isto é nada, se comparado às façanhas do tráfico no Rio e em São Paulo). Veja que Fantástico: "POLÍTICOS E PMs UNIDOS NO CRIME", "GRUPOS DE EXTERMÍNIO CHEGAM AO PODER". Nos anos 80 e 90, os grupos de extermínio passavam a operar com mais dificuldade, por causa do ocaso da ditadura militar. O papel da imprensa é interesante, que passa a dar cobertura para casos de homicídios em massa. Não fôsse todo um esquema montado, teríamos uma idéia REAL do perigo que enfrentamos, todos os dias, dentro ou fora de casa. Em pleno ano DOIS MIL E SEIS, um homem mata, esquarteja e joga o corpo de uma empresária no lixo. Assassinato motivado APENAS por discussão sobre estacionamento. O assassino confesso diz que dividiu o cadáver em tres partes. "FANTÁSTICO"!!!
    Quanto à política, o poder da imprensa, através da TV é impressionante: "Imprensa é grande praça pública", afirma o Presidente Lula. Disse ainda que, sem os jornais, o país fica privado de uma parte importante de sua capacidade de visão (e ele tem TODA RAZÃO). Segundo ele, a evolução da imprensa ocorre ao mesmo tempo em que o país vive um período histórico perante a democracia. Creio que ELE TAMBÉM NÃO SABIA que o Brasil está confrontado com problemas que afetam todas as democracias do mundo. (Fonte: DATAFOLHA/TV GLOBO 30/08/06).
    Na TELEVISÃO, um mau exemplo:
    De um lado, a mais nova apadrinhada do Cesar Maia, Denise Frossard, do outro, o ex-apadrinhado Eduardo Paes. Ambos apóiam Alckmin e deram péssimo exemplo diante das câmeras (prato cheio para o poder manipulador de opiniões). Paes admitiu que nunca teve registro da OAB, apesar de ter-se declarado Advogado. Já Frossard, que, durante o programa se declarou contra o nepotismo, confessou que manteve por dois anos um sobrinho nomeado em seu gabinete na Câmara.Enquanto isso, Heloísa Helena ainda não percebeu que sem contrôle emocional, domínio próprio, torna-se quase impossível competir com Lula, que se mantém sem um arranhão. Quem se lembra das CPIs, seus momentos de fúria, em que ela representava a defesa da ética, com ataques contundentes à corrupção, quase desfalecia pela tosse cumpulsiva e a boca "espumante"? Isto é: "FANTÁSTICO", da idade da pedra, ao homem de plástico, o show da vida...e Fantástico!!!
    Compromissos vagos e promessas irrealizáveis, são a marca do programa de govêrno, tanto do PT quanto do PSOL, e etc, e etc...
    Ah, a nossa santa TV, não fôsse ela, como veríamos nos Tele-jornais, as notícias sobre Collor, sem pudores, dizer que encomendou pesquisa e constatou que teria chances. Chances??? A TV ligada na sala de Maria das Graças, ontem à tarde, ganhou a atenção da aposentada quando ela reconheceu na tela um rosto e uma frase que ouviu há 14 anos:"Não me deixem só", na estréia de Collor de Mello, candidato ao Senado pelo PRTB, em Alagoas. Numa jogada estratégica, Collor anunciou que vota em Lula e certamente colheu os frutos de mais um plano: Sem sair de casa, arrecadou uma montanha de votos e conquistou aliados.
    E para finalizar, avivo a memória televisiva, deixando vocês com as imagens do terror em São Paulo. Manifesto de organização lembra vídeo do cartel de Medellín, produzido na década de 80.
    O Brasil só conhece dois episódios que grupos fora da lei ocuparam a televisão para se impôr às autoridades. O primeiro foi o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, pela VPR. O segundo envolve o PCC, que, 37 anos após, exige a divulgação de um texto para libertar o repórter Guilherme Portanova. "Fantástico".

    By Anonymous Anônimo, at setembro 06, 2006 8:44 PM  

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