Câmara Inversa

sábado, março 29, 2008

Imagens discursivas e a Enunciação Jornalística - por Daniel Lopez

1 – INTRODUÇÃO



É preciso avançar o máximo possível no sentido de sugerir que a coisa toda está fundada nas operações da linguagem.

Stuart Hall, Da Diáspora (p. 355)


O sucesso conseguido pela televisão, desde sua origem, está calcado, entre outros fatores, em seu poder de conotação, ou seja, o poder de criar uma realidade particular, um mundo próprio, imaginário e mágico, em que nem sempre vigoram as regras e valores do mundo externo.

Operando através do caráter “mágico” da imaginação (Sartre, 1936), a televisão mediatiza a relação entre fato e espectador, em um processo em que não raro há subjetividade e conotação. Segundo Ernest Gombrich (1969), entre a representação e a realidade externa só há ilusão. É neste contexto que se pode ressaltar também as “hesitações” que acontecem no telejornalismo, em que a forma como as informações são mostradas e organizadas pode produzir um “efeito de real”, mas nem sempre refletir os fatos em sua forma mais consistente.

Por outro lado, partindo do princípio que a notícia possui características da narrativa, considera-se, aqui, a premissa de que ela também pode produzir efeitos de real, isto é, que é capaz de constituir o real. A partir do momento em que a notícia busca conferir uniformidade aos micro-aspectos do fato, produz-se um enredo, entendido como campo de problemas de uma experiência. Sendo a notícia, portanto, um enunciado ou uma seqüência de enunciados narrativos, torna-se possível a produção de notícias que abram margens à conotação.

O objetivo deste projeto, portanto, é desenvolver uma análise lingüística sobre a construção de sentido, com base na Análise de Discurso francesa (principalmente a partir da obra de Dominic Maingueneau) tendo como foco o ethos construído (produzido) pelo casal Fátima e William Bonner.
Desse modo, a justificativa da relevância deste projeto reside na possibilidade de se analisar a construção semântica dos enunciados no jornalismo televisivo, a partir de uma análise lingüística (Análise de Discurso). Além disso, a motivação para a presente pesquisa está na busca pela compreensão do modo pelo qual o jornalismo televisivo, através das ferramentas discursivas, atua na construção da semiosfera e noosfera sociais, já que funciona como produtor de significados e valores que serão compartilhados pelo conjunto da sociedade. Assim, o presente trabalho permitirá uma visão mais acurada sobre a força do jornalismo televisivo na configuração lingüística e social brasileira.

Palavras-chave: telejornalismo; ethos; Análise de Discurso; mídia; mediação.


2 - PROBLEMA

A pergunta central que ganha motivação a partir da análise aqui proposta é: De que maneira o ethos produzido pelo casal Bonner determina significados e posições de sujeito no Jornal Nacional (JN)? Poderíamos dizer que há uma interferência da imagem do casal ao reportar a notícia, já que em seus enunciados podem ser observados traços deste ethos conjugado? Como, portanto, os enunciados do JN operam as ferramentas lingüísticas e discursivas para produzir “efeitos de discurso” específicos?

Ao reportar um discurso, os apresentadores se envolvem com o que está sendo dito? De que maneira este ethos composto atua no sentido de simular ou reelaborar as palavras de um entrevistado?

Segundo Chiavegatto (2001:244),

O jornalista ativa os domínios cognitivos das ‘outras vozes’ armazenadas na memória. Entre os elementos que o compõem, lança luz (o foco) sobre aquilo que lhe interessa focalizar, fazendo os recortes que achar conveniente (…). O discurso jornalístico exige que o profissional saiba muito bem quando deverá usar um discurso direto, indireto ou uma paráfrase: cada construção revela a ideologia dos sujeitos que a constroem.

5 – CORPUS DE ANÁLISE

O trabalho tem como principal objeto de estudo o jornalismo televisivo noturno da TV brasileira, de modo particular, o Jornal Nacional, da Rede Globo. Para tanto, a investigação compreenderá pesquisa bibliográfica.
O interesse pelo corpus em questão advém do fato de que o Jornal Nacional é o de maior audiência do país, tendo, portanto, grande influência sobre a conjuntura nacional. Além disso, o programa é ricamente ilustrado por gráficos, efeitos visuais e sonoros, cenários, jogos de câmera (travellings e panorâmicas), expressões faciais dos apresentadores e os diversos recursos da língua e do discurso.
Para o desenvolvimento do trabalho, serão utilizados os seguintes procedimentos:

- Acompanhamento e gravação de 10 edições do Jornal Nacional. Para que haja maior abrangência, a proposta é acompanhar uma edição por semana, o que resulta no acompanhamento do jornal por 10 semanas;
- Revisão bibliográfica e analise sobre o tema em livros, dissertações, teses e artigos.

4- FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A fundamentação teórica, como fonte principal de sustentação da análise coloca em pauta conceitos da Análise do Discurso, para atendimento do ethos do casal apresentador do JN.
Os primórdios do conceito de ethos podem ser encontrados na Retórica de Aristóteles. Para este filósofo grego, ethos se relacionava diretamente aos meios através dos quais o orador, por meio de uma maneira de dizer peculiar, conseguia cativar a platéia, a fim de que aceitassem seus argumentos. Era através dos recursos do ethos que os ouvintes dariam credibilidade ao discurso do orador.

No entendimento de Eggs (1999), Aristóteles se referia a ethos como algo relacionado à idéia de honestidade. Dominique Maingueneau (1987 e 1999), levando o conceito de ethos para o contexto da Análise de Discurso, passa a entendê-lo como característico de uma prática discursiva.


6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
6.1 – Referências principais:

CHIAVEGATTO, Valéria Coelho. Construções e funções no discurso jornalístico: o processo cognitivo de mesclagem de vozes. In AZEREDO, José Carlos de. Letras e Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2001.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Rio de Janeiro: Loyola, 2004.

___________. As palavras e as Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte, UFMG, 2003.

LOPES, Maria Immacolata Vassalo de (org.). Epistemologia da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2003.

MAINGUENEAU, D. 1987. Novas tendências em Análise do Discurso. 3ª ed. Campinas.

MAINGUENEAU, D. 1999. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, R. Imagens de Si no discurso. Trad. Dilson F. da Cruz; Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2005.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às Mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.

PINTO, Milton José. Comunicação e discurso – introdução à análise de discursos. São Paulo: Hacker, 2002.

ROCHA, Everardo. A sociedade do sonho: Comunicação, Cultura e Consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.

SILVA, Patrícia Alves do Rego Silva. As marcas da enunciação no texto jornalístico policial. www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno07-02.htm

VASCONCELOS, Z. A Linguagem enquanto tecnologia de representação. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2004.

6.2 – Referências auxiliares:

AGUIAR, Vera Lúcia Teixeira de. O Verbal e o Não Verbal. São Paulo: Unesp, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.

BARTHES, Roland. A Morte do Autor, in O Rumor da Língua, Lisboa: Edições 70, 1987.

BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1971.

BRETON, Philippe. A Manipulação da Palavra. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade, 2ª edição, tradução de Guy Reynaud, R.J., Paz e Terra, 1982.

DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

ECO, Umberto. A Busca da Língua Perfeita. Bauru: USC, 2002.

ESPINOSA, Baruch. Ética. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2002.

SARTRE, Jean Paul. A Imaginação. Difusão Européia do Livro, São Paulo: 1964.

SCHOPENHAUER, Arthur. Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

A interface gramática-pragmática - por Daniel Lopez

Introdução

Chomsky, a partir de seu trabalho Syntactic Structures (1957), inaugura uma nova perspectiva metodológica para a lingüística. A partir de então, segundo Campos (2004:27), a teoria da linguagem “se viu determinada pelo paradigma das ciências naturais, sob a inspiração de um empirismo mais abstrato e sofisticado, compatível com a matematização crescente em áreas como a Física, Química e Biologia". Neste sentido, a sintaxe se colocou como o componente mais importante desta nova teoria lingüística, uma vez que, para Chomsky, tudo o que pode ser descrito está nos limites da forma. E o foco sobre o modelo formal não deixa, a priori, espaço para questões de ordem pragmática, pois estas estão fora daquilo que poderia ser materializado gramaticalmente como regras e formas específicas.

Além disso, com a proposta recente de um Programa Minimalista (Chomsky, 1995), a possibilidade de se incorporar uma reflexão pragmática ao modelo formal se tornou ainda mais improvável.

A pragmática, por sua vez, se carateriza por um ramo da linguística que visa a captar a discrepância entre o significado proposicional recuperável pela semântica composicional de um enunciado e o significado visado por um falante numa dada enunciação. Estuda os significados linguísticos determinados não exclusivamente pela semântica proposicional ou frásica, mas dedutível de condições dependentes do contexto extra-linguístico: discursivo, situacional etc. Diferente da semântica, que se concentra no significado que deriva do conhecimento puramente lingüístico, a pragmática se concentra nos aspectos do significado que não dependem somente do conhecimento lingüístico, levando em conta o conhecimento sobre o mundo físico e social.

Portanto, a impressão que se tem é a de que existe uma barreira intransponível entre gramática e pragmática, já que os modelos formais geralmente não consideram questões pragmáticas como relevantes gramaticalmente. Porém, o presente artigo busca divulgar alguns dos trabalhos que têm explorado a interface entre esses dois ramos, aparentemente antagônicos, da lingüística de vertente formalista.

Na primeira seção deste artigo, apresenta-se, em linhas gerais, a concepção minimalista dessa vertente, conhecida como gerativismo. A seguir, discute-se mais detidamente a questão da inclusão da pragmática na gramática, enfocando-se as posições antagônicas defendidas pelos formalistas e os funcionalistas. Na Seção 3, apresenta-se, no entanto, uma proposta formal de incorporação da pragmática na sintaxe, defendida por Speas (2000). Os temas de evidencialidade e logoforicidade são aí tratados. Por fim, uma breve conclusão retoma os principais pontos discutidos neste artigo.

A concepção minimalista da vertente formalista

Raposo (1999) chama a atenção para o fato de que o Programa Minimalista (PM) não é um quadro teórico novo da gramática generativa, já que se funda sobre a teoria de Princípios e Parâmetros (P&P), partindo das concepções aí assumidas e dele depende até mesmo no momento de propor novas questões. Neste sentido, o PM se constituiria por um conjunto de orientações que evitam a postulação de elementos teóricos que não sejam necessários conceitualmente dentro do sistema da teoria. Dessa forma, o conhecimento lingüístico concebido no arcabouço do programa minimalista não é completamente diverso do modelo antigo, mas visto por um novo enfoque de ordem prático-econômica.

O Programa Minimalista mantém a idéia chomskiana inicial de que os componentes centrais da linguagem são inatos (Gramática Universal), mas acrescenta uma proposta nova sobre a arquitetura da faculdade lingüística. A idéia central do Programa Minimalista quanto ao conhecimento lingüístico é a premissa de que o sistema computacional que se relaciona à linguagem é perfeito. Trata-se de uma solução computacionalmente ótima para ser utilizada pelo ser humano. A faculdade lingüística contém unicamente aquilo que é conceitualmente necessário, a partir de um ponto de vista filosófico, biológico e físico. Segundo uma versão forte do programa minimalista, nada no sistema é redundante. Neste sentido, o mínimo que se deve ter é um mecanismo para gerar um número potencialmente infinito de sentenças e materializá-las através de certo conjunto de sons, associados a seus respectivos conceitos.

Deste modo, há pelo menos três componentes:

1- Um sistema de conhecimento, que se relaciona à competência, de caráter computacional, formado pelo léxico e pela sintaxe, e que alimenta dois sistemas de ação, a saber;
2- O sistema articulatório-perceptual, que interpreta as instruções para a emissão da sentença;
3- O sistema conceitual-intencional, que interpreta as instruções para a composição lógico-semântica.

A relação entre a sintaxe e os sistemas de atuação se produz através de dois níveis de representação: a Forma Fonética (PF) e a Forma Lógica (LF). Esta arquitetura simplifica o modelo anterior, ao eliminar níveis intermediários como Estrutura Profunda e Estrutura Superficial, que haviam sido cruciais desde o começo da Gramática Transformacional. Dessa maneira, muitas ferramentas teóricas do modelo anterior foram simplificadas ou mesmo deixadas de lado.

Neste sentido, o Programa Minimalista permite pensar um novo tipo de derivação. Nas versões anteriores era possível estabelecer condições de economia global (como é o caso dos filtros), que se impunham sobre o produto final da derivação, ou seja, sobre uma apresentação sintática completa. Dessa maneira, haveria uma redundância aparente, pois estar-se-ia gerando estruturas que logo seriam bloqueadas por condições de tipo global. Na hipótese minimalista mais forte, as condições não se impõem sobre uma representação acabada, mas sobre cada um dos passos da derivação. Nesta visão, as condições de economia são locais, e não mais globais. Isto evita a geração desnecessária de estruturas que logo seriam descartadas.
Quanto à arquitetura do modelo de língua assumido nessa concepção, o PM confere importância crucial ao lugar e papel da linguagem na mente humana, a partir do entendimento de que a Faculdade da Linguagem (FL) faz parte de um sistema biológico que funciona como parte de uma finalidade expressiva.

A arquitetura é, portanto, implementada por um sistema de produção e outro de recepção (de natureza sensorial ou motora). Quanto à produção, há o sistema vocálico-articulatório, que equivale ao sistema neuro-auditivo do sistema de recepção. Os sistemas externos são chamados de “sistemas de performance”, que são de dois tipos: sistemas de pensamento e sistemas sensorio-motores. Dessa forma, a Faculdade da Linguagem (aspectos da mente dedicados à linguagem) tem que associar a cada expressão um nível de representação que faça o contato com cada um dos sistemas de performance, os chamados níveis de interface. Dessa maneira, vê-se a FL como uma solução ótima para as condições de legibilidade.

Portanto, no bojo das inovações do PM com relação à teoria de P&P está uma arquitetura que reflete o modelo de língua assumido nessa concepção. O modelo contém apenas aquilo que é conceitualmente necessário.

A arquitetura proposta pelo programa minimalista é, portanto, a seguinte:





O Programa Minimalista, porém, apesar de reconhecer que a linguagem é um sistema biológico adaptado a uma tarefa expressiva (fornecer expressões para falar sobre o mundo, descrever, referir, perguntar, exprimir “atitudes proposicionais”, comunicar com outros, articular pensamentos para si próprio, insultar, enganar etc), ainda não forneceu um modelo que explique como essas diversas intencionalidades operam em sua interface com o léxico a fim de exprimir intenções do falante. Isto fica patente em Raposo, 1999:

Para dar uma etiqueta a esta coleção de intencionalidades, digamos que se organizam em “sistemas de pensamento” (SP)...

Temos, no entanto, de reconhecer que sabemos muito pouco sobre estes SPs e o modo como as diversas “intencionalidades” se agregam neles: será que a cada intencionalidade reconhecível corresponde um SP, ou será que diversas intencionalidades se agregam em um mesmo SP? Neste caso, quais são os cortes organizativos? Quais são as propriedades dos SPs? (Raposo 1999, p. 24, nota 22).

Verdade é que alguns trabalhos têm buscado investigar este âmbito da teoria gerativista (como os artigos sobre evidencialidade e sobre o Ponto de vista), mas ainda se carece de uma teoria que dê conta desta operação tão fundamental e evidente na realização da linguagem humana.
A arquitetura proposta seria, portanto, a seguinte:








A inclusão da pragmática na gramática: funcionalistas X formalistas

Enquanto para os formalistas a pragmática não pertence à Gramática (conforme o modelo formal exposto na introdução deste artigo), os funcionalistas advogam a favor de uma interface entre ambas as áreas. Recorrendo a Auwera (1989), Neves (2001) afirma que a gramática funcional é o modelo gramatical que obteve a maior integração da pragmática na Gramática.


Neves (2001) afirma que, segundo a gramática funcional, há pelo menos dois casos pragmáticos evidentes na gramática: o Tópico (constituinte acerca do qual se faz um comentário que equivale a uma oração) e o Foco (constituinte que carrega a informação mais saliente). A título de exemplo, a autora toma a seguinte frase:

Maria deu o livro a Joana

Neste caso, dar é o verbo que contém três argumentos, a saber: Maria, o livro e Joana. Estes argumentos, por sua vez, teriam, além de funções semânticas e sintáticas, funções pragmáticas, determináveis apenas em frases enunciadas. A estrutura dos argumentos ficaria assim:




Retornando a Auwera, quanto ao debate sobre o fato de a pragmática ser interna ou externa à Gramática, o autor afirma que ambas as posições estão corretas. Um exemplo de pragmática externa à Gramática seria a visão do planejamento da língua na perspectiva de sua adaptação ao ambiente. Por outro lado, uma pragmática interna à Gramática é, por exemplo, o caso da colocação da topicidade como central na organização da Gramática, conceitos que já foram incorporados por análises formais, como nos trabalhos de Rizzi (1997) que implode o nível CP, apontando para projeções do tipo TopP e FocP.


A partir desta constatação, Auwera afirma que se deve perguntar, então:

1- Como decidir o que é interno e o que é externo à gramática?
2- O que é mais relevante para o preparo das gramáticas de línguas particulares?

Em seus trabalhos, Auwera somente responde à segunda pergunta, defendendo que a pragmática interna à gramática é a mais proveitosa ao preparo de gramáticas. Dessa maneira, os funcionalistas acreditam oferecer uma das alternativas mais interessantes para transpor o problema metodológico resultante da ausência da importância do contexto social na interação lingüística.


Além disso, os estudos sobre evidencialidade e logoforicidade também trazem contribuições importantes para as pesquisas que exploram a interface entre gramática e pragmática.

Proposta formal de incorporação da pragmática na sintaxe: evidencialidade e logoforicidade

Mostrando que é possível aliar sintaxe à pragmática, Speas (2000), professora de lingüística na Universidade de Massachusetts, em seu texto “Evidentiality, Logophoricity and the Syntactic Representation of Pragmatic Features”, prova que, em certos casos, há indícios pragmáticos relevantes para os estudos sintáticos.


A autora argumenta que há, em determinadas línguas, pelos menos dois casos que rompem a histórica barreira entre sintaxe e pragmática. Um deles é a “evidencialidade”. Certas línguas possuem “morfemas evidenciais” que marcam a fonte de onde o falante colheu as informações reportadas em seu discurso. Outras línguas possuem “pronomes logofóricos”, que se referem a um indivíduo cujo ponto de vista está sendo representado. Speas argumenta que, apesar de ambos os casos serem geralmente vistos como pragmáticos e não diretamente representados na sintaxe, há papéis pragmáticos sintaticamente relevantes que estão evidentes, por exemplo, por certos afixos verbais ou partículas, obrigatórios em determinadas línguas, que expressam o meio pelo qual o falante obteve a informação que ele está fornecendo. Um exemplo é o tibetano:

a. K’oŋ gis yi-ge bri-pa-red ’ “Ela escreveu uma carta (supostamente)”
s/he ERG write-Perf-EVID


b. K’oŋ gis yi-ge bri-pa-soŋ ’ “Ela escreveu uma carta (Eu a vi escrevendo)”
s/he ERG write-Perf-EVID

O fato de que tais morfemas são obrigatórios, em línguas como o tibetano, levanta a questão de como estes termos obrigatórios passam a ser representados sintaticamente. Speas demonstra que termos evidenciais interagem diretamente com termos flexionais que são projetados sintaticamente, como pessoa e tempo. Além disso, muitas línguas externam termos evidenciais como auxiliares modais, advérbios ou predicados de atitude proposicional, que possuem propriedades sintáticas e de Forma Lógica altamente restritas. Neste sentido, a pergunta que norteia seu artigo é a seguinte: assumindo que as propriedades fundamentais da Forma Lógica são universais, pergunta-se de que maneira morfemas evidenciais compartilham propriedades sintáticas ou de LF com estes outros meios de expressar fontes de evidência?


Recorrendo a uma investigação de 32 línguas feita por Willet (1988), Speas afirma que há, pelos menos, três tipos de evidência de experiência pessoal do falante, ou “Categorias de Evidencialidade”:


1- Experiência pessoal;
2- Evidência direta (sensorial);
3- Evidência indireta;
4- Evidência narrada (reportada).


Há inúmeras outras fontes possíveis de evidência (como divina revelação, aprendizado por tentativa e erro, ensinamentos de uma autoridade competente, etc), mas somente estes quatro casos aparecem gramaticalmente como morfemas evidenciais.


Há uma curiosidade com relação a estes quatro casos que revelam traços de evidencialidade: há uma hierarquia entre essas categorias, que corresponde ao grau de proximidade do falante com a experiência narrada. Desde a “experiência pessoal” até a “experiência narrada” há um decréscimo gradual de envolvimento do falante, e esta característica é refletida como uma hierarquia gramaticalmente expressa. Além disso, as línguas que apresentam estes indícios de evidencialidade combinam sempre duas categorias adjacentes (“evidência indireta” (3) e “evidência narrada” (4)), e nunca duas não adjacentes (como “experiência pessoal” (1) e “evidência indireta” (3)). A língua Makah (tribo nativa da América do Norte), por exemplo, possui um morfema que marca evidência direta (2) ou experiência pessoal (1), enquanto a língua Jaqi (família lingüística da América do Sul Andina) tem um morfema que marca evidência direta (2) ou evidência indireta (3). Dessa maneira, quando uma língua marca morfologicamente a fonte de evidência da informação narrada, as categorias marcadas são regidas tanto em número quanto em organização, de modo que os morfemas de evidência marcam não somente a fonte de informação, mas o grau de proximidade do falante com a evidência.


A fim de revelar alguns casos de projeções sintáticas da evidencialidade, Speas recorre aos estudos de Cinque (1999), ao verificar que morfemas evidenciais demonstram regularidade interlingüística com relação à sua posição na palavra, ocorrendo mais próximo à raiz verbal do que morfemas que marcam o tipo de ato de fala, por exemplo. Cinque propõe que sentenças incluem numerosas projeções acima do nível IP ou TP, entre as quais estão:


1- Speech Act Mood: indica o tipo de Ato de Fala (declarativo, interrogativo, etc.);
2- Evaluative Mood: indica a avaliação do falante com relação ao evento reportado(bom, ruim, surpreendente, etc);
3- Evidential Mood: indica a natureza da evidência do falante quanto à verdade da proposição;
4- Epistemological Mode: indica o grau de certeza do falante quanto à proposição.


A argumentação de Cinque se baseia no padrão encontrado na ordem dos morfemas, assim como nas restrições de posicionamento dos advérbios: um advérbio não pode preceder outro advérbio que modifica uma categoria superior. Cinque afirma que advérbios que expressam evidencialidade ocorrem entre advérbios avaliativos e epistemológicos.


Speech Act Mood
frankly, confidentially

Evaluative Mood
unfortunately, luckily, surprisingly

Evidential Mood
allegedly, reportedly


Epistemological Mode
obviously, apparently



Dessa maneira, a realização morfológica e sintática da evidencialidade ocorre de maneira que a ordem das palavras e morfemas reflete escopo.


Concluindo, vê-se que a tipologia de categorias evidenciais não somente se baseia em um programa pragmático, mas reflete um grau surpreendente de organização hierárquica. Todavia, a surpresa não pára neste ponto. Examinaremos outra faceta da interface entre pragmática e sintaxe, chamada “logoforicidade”.



Logoforicidade

A Logoforicidade é caracterizada pela presença de um pronome “logofórico” (Hagège, 1974), que designa uma categoria de substitutos que se referem ao autor de um discurso ou a um participante cujos pensamentos são relatados. Dessa maneira, a logoforicidade funciona não somente para se referir às palavras de um outro indivíduo, mas a seus pensamentos e pontos de vista.


Temos como um bom exemplo os estudos de Culy (1994) sobre o Dono S (língua africana da República do Mali), onde se observa que o pronome regular wo/woň é usado para co-referência pronominal simples, enquanto o pronome logofórico inyemε/ inyemεň é utilizado para referir à pessoa cujo discurso está sendo reportado.
Segue abaixo um exemplo (in Speas, 2000):



Oumar Anta woň waa be gi

Oumar Anta 3sg-ACC seen AUX said

“Oumari disse que Antaj tinha visto elek”


Oumar Anta inyemεň waa be gi

Oumar Anta LOG-ACC seen AUX said

“Oumari disse que Anta tinha visto elei”


No exemplo seguinte, vemos que o pronome logofórico inyemε não pode ser usado para referir a alguém que não seja a pessoa cujo discuro/pensamento/conhecimento está sendo reportado.


a. Anta wo wa Fransi boojε g egaa be

Anta 3sg SUBJ France go.fut-3sg COMP heard AUX

“Antai escutou que elai/j irá para a França”.


b. *Anta inyemε wa Fransi Boojε g egaa be

Anta LOG SUBJ France go.fut-3sg COMP heard AUX

“Antai escutou que elai irá para a França”.


Além desses exemplos, o termo “logofórico” também tem sido utilizado para certos tipos de reflexivos que não são unidos localmente. Reinhart e Reuland (1993) usam o termo para referir a anáforas de longa distância, em línguas como o japonês, assim como a anáforas que não possuem um antecedente lingüístico, como na frase “The paper was written by Ann and myself”. Fato é que as línguas diferem quanto ao tipo de referente que um pronome logofórico pode ter. Sells (1987) argumenta que o referente de um pronome logofórico pode possuir um dos três diferentes papéis pragmáticos abaixo:


FONTE (SOURCE)
A pessoa que reporta o fato

SI PRÓPRIO (SELF)
A pessoa cuja “mente” está sendo reportada

PIVÔ
A pessoa de cujo ponto de vista se está reportando o fato


Podemos observar todos estes três papéis presentes na frase “Mary wants me to come to John’s party”. Nesta sentença, o falante é a FONTE, Mary é o SI MESMO (já que são seus desejos que estão sendo reportados), e John (ou aquele que está dando a festa) é o PIVÔ, já que o uso do verbo come indica que o ponto de vista daquele que está dando a festa está sendo assumido.
Segundo Sells, em determinadas línguas os pronomes logofóricos só se referem à FONTE, outras permitem referir à FONTE e ao SI MESMO e outras permitem referir aos três. Além disso, as línguas parecem não permitir que os pronomes logofóricos refiram à FONTE e ao PIVÔ e não ao SI MESMO, ou ao SI MESMO e ao PIVÔ sem referir à FONTE. Há uma hierarquia sintática, pois a ordem é definida.


Uma hierarquia parecida governa os predicados cujo complemento pode conter um pronome logofórico. Em algumas línguas, um pronome logofórico só pode ocorrer no complemento de um verbo de fala, e o antecedente do pronome logofórico deve ser o sujeito do verbo de fala. Há, portanto, uma regra: se o complemento de uma dada categoria de predicado é um “contexto logofórico” (sentença em que um pronome logofórico pode ocorrer), o complemento de todas as categorias “superiores” são também “contexto logofórico”. Fica sendo, portanto, a hierarquia do predicado logofórico, a seguinte:

Fala >> pensamento >> conhecimento >> percepção direta.


Logoforicidade e confiabilidade

Culy considera que a hierarquia acima reflete a interação das três variantes de confiabilidade:

1- Confiabilidade na situação (se o falante percebeu diretamente o evento);
2- Confiabilidade na reportagem 1 (se há um pressuposto de verdade na reportagem 1);
3- Confiabilidade na reportagem 2 (se o sujeito tem evidência direta quanto à reportagem 2).

Neste sentido, uma sentença com um predicado de FALA expressa uma situação confiável (“Maria disse que seu gato é inteligente” insinua que o falante a escutou proferir tal frase, ou seja, é confiável que ela tenha falado isso). Todavia, a verdade ou não de sua afirmação não é confiável, já que nada em minha reportagem indica que Maria tenha evidências diretas que comprovem que seu gato é inteligente.


Por outro lado, uma sentença com um predicado de PENSAMENTO não é uma situação confiável, já que o falante não pode perceber diretamente os pensamentos de outra pessoa. Este caso de predicado de PENSAMENTO também não expressa uma reportagem confiável, pois não traz consigo nenhuma afirmação de que os pensamentos do sujeito são verdadeiros.


De modo semelhante, predicado de CONHECIMENTO e de EXPERIÊNCIA DIRETA também não introduzem situações confiáveis, já que o sujeito não pode perceber diretamente o conhecimento ou a experiência de outra pessoa. Todavia, estes predicados introduzem reportagens confiáveis, já que a oração principal pressupõe a verdade da oração complementar.
Além disso, reportagens introduzidas por predicados de CONHECIMENTO não trazem nada que permita saber se o sujeito tem evidência direta para o conhecimento. Por outro lado, reportagens introduzidas por predicados de PERCEPÇÃO DIRETA são confiáveis, porque trazem consigo a informação de que o sujeito tem evidência direta para a verdade da sentença.


Neste sentido, Culy defende que os “contextos logofóricos” surgem quando a situação é maximamente confiável e a reportagem é minimamente confiável. Fica, portanto, claro que o importante é que os fatores que determinam a logoforicidade envolvem a confiança da evidência e o grau de envolvimento pessoal, que são aparentemente os mesmos fatores envolvidos na evidencialidade.

Conclusão

A constatação de que há certas construções que trazem consigo indícios de graus variados de conhecimento que o locutor possui do mundo, do assunto codificado na sentença e da fonte de onde ele obteve determinadas informações, revela que, de fato, a interface entre a pragmática e a gramática é um interessante campo a ser explorado.


Apesar de a proposta recente de um Programa Minimalista (Chomsky, 1995) ter reduzido a possibilidade de se incorporar uma reflexão pragmática ao modelo formal, investigações sobre a ocorrência de regras gramaticais que marcam indícios de evidencialidade e logoforicidade, por exemplo, mostram que a fronteira entre gramática e pragmática não é tão improvável quanto se imaginava. Além disso, o modelo funcionalista também advoga a favor de uma interface entre ambas as áreas, defendendo que a gramática funcional é o modelo gramatical que obteve a maior integração da pragmática na Gramática, através de noções como tópico e foco.


Quanto à proposta formal de incorporação da pragmática na sintaxe, os trabalhos de Margareth Speas, por exemplo, oferecem evidências de que existem projeções sintáticas que possuem características pragmáticas. Suas constatações apóiam os trabalhos de Cinque, segundo o qual existem projeções para “Speech Act Mood”, “Evaluative Mood”, “Evidencial Mood” e “Epistemological Mood” no topo das sentenças (entre a camada IP/TP e a CP).


Alguns dos dados colhidos por Speas mostram que estas quatro categorias são hierarquicamente organizadas entre si, mas não necessariamente oferecem evidências de projeções na sintaxe. Por exemplo, sua observação de que a evidencialidade e a logoforicidade estão subjugadas às mesmas hierarquias pode ser considerada um fato sobre escopo semântico, assim como a organização de um componente pragmático distinto.


A autora, porém, mostrou que a tipologia dos predicados logofóricos parece envolver subcategorizações para estas quatro projeções pragmáticas, assim como variação na posição sintática de um operador que ordena os pronomes logofóricos.


Além disso, Speas mostrou que a evidencialidade interage proximamente com características sintaticamente representadas, incluindo pessoa e tempo. Segundo a autora, se não existem tais projeções, deve-se encontrar uma explicação alternativa, assim como encontrar um “componente pragmático cujos princípios mimetizam aqueles do componente sintático de uma maneira assaz surpreendente” (tradução nossa).


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