Literatura
Há quem diga que não se pode inventar o dom, que determinada dose de criatividade é inerente a cada ser humano. Até pode ser. Mas quem disse que o dom tem que despertar ou ser exercido desde cedo? Pelo menos seria esta a pergunta que o escritor irlandês Frank McCourt faria a quem o interrogasse acerca de suas aspirações.
Seu primeiro romance (e inesquecível obra-prima) "As Cinzas de Angela" (Editora Objetiva), vencedor do prestigioso Prêmio Pulitzer, completa, este ano, 10 anos de publicação. Ao ser lançado, McCourt já era um idoso de 66 anos de idade. "As Cinzas de Angela" engrossa a lista de grandes obras contemporâneas provenientes da Irlanda. Talvez seja este país, atualmente, o mais fértil celeiro de autores de língua inglesa do mundo. Seu primeiro romance retrata a história de uma família que, em plena Grande Depressão, faz o caminho inverso de migração: sai do Brooklyn, EUA e volta a Limerick, Irlanda.
Se a situação da pobreza no Brasil assusta a muitos, McCourt faz ela parecer quase nada perto do que os irlandeses sofreram, castigados ainda por cima pelo clima frio e úmido. Como se trata de um texto de memórias, assim como os dois livros que o escritor lançaria depois (não existem no Brasil; chamam-se "´Tis" e "Teacher Man"), o narrador-personagem é em primeira pessoa. Ele começa criança e termina o livro um jovem com pouco menos que 20 anos. E é justamente daí que vem a principal força-motriz de "As Cinzas de Ângela" - a prosa, repleta de lirismo, é extremamente impressionista.
Muitas vezes, o narrador não precisa descrever o que está acontecendo com fidelidade; basta que enxerguemos os fatos pelos seus olhos para que sintamos o mesmo que ele e saibamos o que se passou. McCourt usa um artifício que, dizem (nunca li), pode ser encontrado nos livros de Saramago: frases longas e sem pontuação. Os diálogos são todos colocados na forma direta, mas jamais existem aspas, travessão ou qualquer elemento desse tipo. O pequeno Frank nos conta tudo o que aconteceu como se escrevesse diretamente para cada um de nós e tornasse a experiência para o leitor obrigatoriamente viceral. Daqui a algumas décadas, vai ser lembrado como um dos grandes da literatura universal.
P.S.: O livro ganhou uma adaptação para o cinema pelas mãos de Alan Parker, mas, infelizmente, o resultado é infinitamente inferior ao livro.
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