Câmara Inversa

quinta-feira, maio 25, 2006

Literatura

Fluxos Contrários


Há quem diga que não se pode inventar o dom, que determinada dose de criatividade é inerente a cada ser humano. Até pode ser. Mas quem disse que o dom tem que despertar ou ser exercido desde cedo? Pelo menos seria esta a pergunta que o escritor irlandês Frank McCourt faria a quem o interrogasse acerca de suas aspirações.

Seu primeiro romance (e inesquecível obra-prima) "As Cinzas de Angela" (Editora Objetiva), vencedor do prestigioso Prêmio Pulitzer, completa, este ano, 10 anos de publicação. Ao ser lançado, McCourt já era um idoso de 66 anos de idade. "As Cinzas de Angela" engrossa a lista de grandes obras contemporâneas provenientes da Irlanda. Talvez seja este país, atualmente, o mais fértil celeiro de autores de língua inglesa do mundo. Seu primeiro romance retrata a história de uma família que, em plena Grande Depressão, faz o caminho inverso de migração: sai do Brooklyn, EUA e volta a Limerick, Irlanda.


Se a situação da pobreza no Brasil assusta a muitos, McCourt faz ela parecer quase nada perto do que os irlandeses sofreram, castigados ainda por cima pelo clima frio e úmido. Como se trata de um texto de memórias, assim como os dois livros que o escritor lançaria depois (não existem no Brasil; chamam-se "´Tis" e "Teacher Man"), o narrador-personagem é em primeira pessoa. Ele começa criança e termina o livro um jovem com pouco menos que 20 anos. E é justamente daí que vem a principal força-motriz de "As Cinzas de Ângela" - a prosa, repleta de lirismo, é extremamente impressionista.


Muitas vezes, o narrador não precisa descrever o que está acontecendo com fidelidade; basta que enxerguemos os fatos pelos seus olhos para que sintamos o mesmo que ele e saibamos o que se passou. McCourt usa um artifício que, dizem (nunca li), pode ser encontrado nos livros de Saramago: frases longas e sem pontuação. Os diálogos são todos colocados na forma direta, mas jamais existem aspas, travessão ou qualquer elemento desse tipo. O pequeno Frank nos conta tudo o que aconteceu como se escrevesse diretamente para cada um de nós e tornasse a experiência para o leitor obrigatoriamente viceral. Daqui a algumas décadas, vai ser lembrado como um dos grandes da literatura universal.

P.S.: O livro ganhou uma adaptação para o cinema pelas mãos de Alan Parker, mas, infelizmente, o resultado é infinitamente inferior ao livro.

**********************************************

Outra obra-prima, desta vez no cinema, é o novo filme do austríaco Michael Haneke: "Caché". Haneke retoma alguns dos seus temas favoritos, como o racismo e a incomunicabilidade incentivada pela televisão, para construir um filme que - ainda não vi nenhum crítico mencionar isso - tem em sua essência duas constatações: o indivíduo de classe média é capaz de tudo para não perder o que tem (o "ter" define o "ser"); e o medo constante que temos dos atos dos outros é fruto do saber que somos capazes de fazer exatamente o que tememos sofrer de terceiros. Esqueçam análises longas e entediadas do filme (como a do Contracampo). Basta assistir ao filme com essas duas idéias em mente e a assustadora banalidade dos acontecimentos ganha uma força sem igual. Já disse e repito: Haneke é um dos grandes na história do cinema.

*********************************************

De vez em quando, vale ler algo mais leve pra distrair. Recomendo "Má Influência" (William Suttcliffe), título recém-lançado pela Editora Francis. Ainda qu o nome seja ruim, é interessante a história da amizade de dois garotos sendo abalada por um terceiro, mais velho e capaz de incitá-los a fazer coisas igualmente excitantes e perigosas. Tem trechos que são brilhantes análises da forma como a relação de amizade entre garotos se estrutura. Só o final, que flerta um pouco com o moralismo familiar, deixa um pouco a desejar. De resto, boa (e divertida) distração.

********************************************

Saiu esta semana o novo cd dos Flaming Lips, "At War with the Mystics". Tem momentos brilhantes, em especial "Yeah Yeah Yeah Song" e "The W.A.N.D", mas deixa a desejar se comparado aos excelentes trabalhos anteriores da banda, "Yoshimi Battles the Pink Robots" e "The Soft Bulletin". Tomara que não deixem a peteca cair também nas suas divertidíssimas apresentações ao vivo...

sábado, maio 13, 2006

Retratos da Alma



"Vi Deus, e ele era uma tenebrosa aranha negra me espreitando no canto do quarto". É mais ou menos essa a frase proferida pela personagem de Harriett Anderson em "Através do Espelho". Ainda que os mais puritanos defendam que ela se aplica melhor às três obras-primas que compõem a trilogia religiosa de Ingmar Bergman (as outras duas - todas lançadas no Brasil em dvd pela "santa" Versátil - são "O Silêncio" e "Luz de Inverno"), ela, de certa forma, define a essência da cinematografia do diretor.

Seus personagens sempre estão em situações limítrofes, em que a sensação de impossibilidade, de inexistência de algo além (salvação, amor, liberdade, Deus, o que quer que seja) encontra nas profundezas da alma humana a sua derrocada. O personagem central de Bergman é, com freqüência, o ser humano que é capaz de encontrar em si próprio os seus fantasmas e, ao mesmo tempo, a partir da relação com os outros, o clímax dos problemas e/ou as suas soluções. Se Deus é uma tenebrosa aranha negra espreitando a jovem esquizofrênica do filme é porque, antes de tudo, ela própria projetou nessa figura seus medos e angústias.


Com o (mais do que) oportuno título de "Bergman - Finitude e Transcendência", começa nessa semana uma mostra sobre o cineasta sueco, sempre no Cine-Arte UFF. Os filmes escolhidos fornecem um panorama abrangente da sua cinematografia, ainda que não representem a obra do diretor da forma mais completa - para isso, títulos fundamentais, como o próprio "Através do Espelho" e outros da sua fase surrealista ("Noites de Circo" e "A Hora do Lobo") não poderiam ficar de fora. Mesmo assim, trata-se de uma oportunidade rara de se ter acesso à obra de um cineasta atualmente esquecido pela crítica e pelo público, um autor inquieto, capaz de criar alguns dos personagens mais humanos e psicologicamente complexos da história do cinema.

Não à toa, alguns dos melhores atores e atrizes que já deram as caras na tela grande (Max von Sydow, Liv Ullman, Harriett Anderson, Gunnar Bjornstrand, Erland Josephson e Bibi Anderson) trabalhavam com ele. De sua cabeça, poderiam sair as histórias mais elaboradas possíveis, como dois dos filmes definitivos da história do cinema sobre a Idade Média - "O Sétimo Selo" (em que um cavaleiro retorna das Cruzadas e, para ganhar tempo de vida, desafia a morte, um ser dotado de imenso poder de aprendizado, para uma partida de xadrez) e "A Fonte da Donzela" (em que um homem hospeda em sua casa os assassinos de sua filha sem saber a identidade deles).


Sempre transitando por gêneros diferentes - como o "western" "O Ovo da Serpente" (a produção definitiva, eu sei, o adjetivo tá repetido demais, sobre a ascenção do nazismo na Alemanha), a comédia "Sorrisos de uma Noite de Verão", os épicos de rito de passagem ("Fanny e Alexander") e conjugal ("Cenas de um Casamento") e os estudos sobre a alma feminina ("Persona" e "Gritos e Sussurros") - Bergman soube, infalivelmente, deixar a sua marca: a do artista que, no mergulho para compreender a alma humana, utiliza o próprio ser humano como oxigênio.


Visualmente, suas representações do que passa no interior do ser humano são impressionantes. Grande parte da culpa é de Gunnar Fischer (o diretor de fotografia dos seus primeiros filmes) e de Sven Nykvist (considerado por muitos - dentre os quais me incluo - o maior diretor de fotografia da história do cinema). Então... Pessoas de Niterói e pessoas de Rio com tempo pra visitar o Araribóia, aproveitem!



*********************************************

Vazou na internet o novo cd do Sonic Youth, "Rather Ripped". É uma mistura do som antigo da banda (rock pesado e sujo) com o som atual dela (as excelentes viagens mais suaves com guitarras que parecem flutuar independente da base nas músicas). Se isso prejudica?! De forma alguma, é bom pra c*******!!! Ah, e a baixista Kim Gordon, a voz feminina mais sexy do rock, tem presença mais marcante.

********************************************

Se perguntar não ofende, então vamos lá: até que ponto a mídia é culpada por essa crise entre o Brasil e a Bolívia? Tá, exclui da resposta os já habituais Veja e amigos, que tem guerra declarada ao presidente. Não sei quanto a vocês, mas a mim soa claramente como a oportunidade pra pintar o Lula como um banana... E falo isso sem julgamento nenhum de valor... Ou não?

domingo, maio 07, 2006

Relações Internacionais

Em tempos de novas mídias tema vira moda e promete novos debates

Sabemos desde Santo Agostinho, no século XIII, que o tempo não existe. Mas se existisse, de fato, teria asas. E muitas. Desde o final dos anos de 1980, os meios de comunicação tiveram inédito avanço em escala global. Uma das novidades, a internet, mudou para sempre o tempo da notícia, que passou a ser dada em tempo real de/para qualquer ponto do planeta. Uma enxurrada de informações inundou a vida dos homens. O tempo nunca foi tão rápido. Parece voar, dando rasante num presente cada vez mais efêmero.
.
Em meio a esse turbilhão acelerado, centenas de fatos, ocorridos a milhares de quilômetros, passaram a ser conhecidos por um número cada vez maior de pessoas. O que antes demoraria até dias para alguém ter conhecimento leva, hoje, o tempo de um download. O regional confunde-se com o global. É incrível imaginar que um usuário de internet, no interior do Acre, tenha mais acesso sobre o cenário internacional da Inglaterra do que um Ministro das Relações Exteriores inglês do século XIX.
.
Toda esta novidade no trato dos acontecimentos globais vem criando uma nova percepção das relações internacionais. E agora não estamos falando apenas de relações entre países, mas entre empresas privadas, organizações não governamentais e blocos econômicos. De refinarias petrolíferas na Bolívia à protestos de imigrantes ilegais nos EUA. O cenário internacional é um organismo que pulsa. E diante deste novo campo do conhecimento, estamos bem servidos em termos de literatura? O que se tem publicado sobre relações internacionais?
.
Poucas editoras têm acreditado nesta área do conhecimento, embora o tema desperte a atenção cada vez mais. Prova disso é o crescimento na procura de instituições que oferecem o curso de Relações Internacionais. Mas as poucas publicações que existem já são um grande avanço para a área, que há pouco tempo estava limitada a referências em idiomas estrangeiros.
.
Editora Campus investe em internacional
.
Uma das editoras que vem acreditando neste nicho de leitura é a Editora Campus/Elsevier. O catálogo da editora possui vários títulos dedicados ao tema, cujos autores representam o que há de melhor na área. Quem procura nas livrarias publicações desta casa encontra importantes obras como “Teoria das Relações Internacionais”, “Economia Política Internacional”, “O Brasil e a Economia Internacional”, “Organizações Internacionais” e vários outros que dão vazão a esta nova demanda, ainda pouco explorada pelo mercado editorial brasileiro.
.
Ainda da Editora Campus, existe o recém lançado “Comércio Exterior – Negociação e aspectos legais”, de Lígia Maura Costa. O livro não poderia ter vindo em hora melhor, traçando teorias e debatendo dispositivos jurídicos que nos ajudam a compreender complexos imbróglios do cenário internacional, como a onda nacionalista do presidente boliviano, Evo Morales.
.
Em 288 páginas a professora da FGV-EAESP, doutorada em direito internacional pela USP, desenha um texto claro, objetivo e nem por isso reflexivo. O livro aborda as relações internacionais do ponto de vista do comércio, ou seja, mediado pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A partir desta chave de entendimento, Ligia Maura coloca a lei como reguladora maior destas relações nem sempre fáceis de regular.
.
Além de casos específicos, a professora examina conceitos, oferece leituras complementares e problematiza o comércio exterior como uma “querela” também da ordem política. É importante lembrar do fino acabamento do livro, que compreende papel anti-reflexo, extensa bibliografia, notas completas e índice de abreviaturas. A leitura é recomendada tanto para profissionais da área quanto para leigos no assunto, uma vez que há um direcionamento didático do texto. Boxes, resumos, tabelas e exercícios mostram esta preocupação fundamental da autora. Um cuidado pouco visto atualmente.
.
Novas perspectivas
.
Ainda que a maioria das editoras tenha uma postura tímida na publicação das relações internacionais, o futuro parece ser animador. Muitas pesquisas vêm sendo desenvolvidas, além da grande exposição do tema na mídia. A tendência é que esta procura tome ainda mais consistência e desperte o interessa do mercado de livros. Algumas editoras já estão em sintonia com esta mudança como é o caso da Saraiva e Companhia das Letras. É pouco, mais já é um começo.