Câmara Inversa

sábado, julho 05, 2008

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE ETHOS NA OBRA DE DOMINIQUE MAINGUENEAU

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE ETHOS NA OBRA DE DOMINIQUE MAINGUENEAU

Por Daniel Siqueira Lopez Lago

Os estudos de Maingueneau sobre o etos remontam à sua obra Gênese dos Discursos (1985). Neste ponto, o autor ainda não falava sobre etos, mas sobre “tom”. Recorrendo a trabalhos pioneiros sobre o tema, Maingueneau afirma, através de Todorov (1981), que Bakhtin já havia insistido sobre o “papel excepcional do tom..., o aspecto menos estudado da vida verbal”, que estaria ligado à “relação do locutor com a pessoa de seu parceiro”. Associando o conceito de tom a “voz”, “oralidade” e “ritmo”, Maingueneau retoma Foucault (1999), para quem não se deve ver no texto “a linguagem de uma voz reduzida ao silêncio”, para defender que o discurso, por meio dos enunciados, produz um espaço onde se desdobra uma voz que lhe é própria. Dessa maneira, inicia-se um modo de abordar o texto que nele encontra uma oralidade, uma voz que lhe é constitutiva. Neste momento, Maingueneau anuncia abertamente que o discurso, por mais escrito que seja, emana e é perpassado por uma voz peculiar, mesmo quando o próprio texto a nega.


Neste ponto do capítulo três de sua Gênese dos Discursos (1985, p. 96), Maingueneau anuncia, sem ainda lhe dar nome, um conceito que no futuro seria fundamental para o que ele entende por etos: o fiador. Neste trecho da Gênese, o autor revela que o tom se apóia em “uma dupla figura do enunciador”: a de um caráter e a de uma corporalidade. A primeira instância (caráter) se mostra consoante com o que Aristóteles entendia por etos. Por outro lado, a segunda instância desta dupla figura do enunciador (corporalidade) se apresenta como um avanço para o conceito de etos, já que o extrapola da oralidade para a escrita, ao encontrar no texto escrito uma vocalidade imanente. A corporalidade se refere, portanto, a um esquema que determina um certo modo de “habitar” (etimologicamente, etos se relaciona a “morada”) o corpo do enunciador e, indiretamente, do enunciatário.


Neste conjunto de definições, caráter e corporalidade compreendem um “modo de enunciação”, que freqüentemente se torna o próprio tema do discurso, além de, por vezes, acabar por tomar corpo a partir da materialidade escrita. Como parte deste desenvolvimento, é na imbricação radical do discurso e de se modo de enunciação que surge outro conceito fundamental para o etos segundo Maingueneau, aqui, já em sua nomenclatura atual: a incorporação. Aqui, Maingueneau (1985, p. 98) expõe um esquema explicativo que se repetiriam em artigos futuros:

1- O discurso, através do corpo textual, faz o enunciador encarnar-se, dá-lhe corpo;
2- Esse fenômeno funda a “incorporação” pelos sujeitos de esquemas que definem uma forma concreta, socialmente caracterizável, de habitar o mundo, de entrar em relação com o outro;
3- Essa dupla “incorporação” assegura, ela própria, a “incorporação imaginária” dos destinatários no corpo dos adeptos do discurso.

No entorno desse campo léxico-semântico composto pelos termos etos, caráter, corpo e incorporação, Maingueneau cita Bourdieu, para quem a linguagem está diretamente relacionada a uma técnica do corpo, sendo que sua porção fonológica colocar-se-ia como uma dimensão corporal, na qual se dá a relação com o mundo social. Dessa forma, Maingueneau retoma Bourdieu para defender que é por intermédio da disciplina corporal e lingüística que se desenrola a incorporação das estruturas objetivas expressas a partir do tom.


Assim, em Gênese dos Discursos, Maingueneau chama atenção para o fato de que qualquer discurso escrito possui uma vocalidade específica, que se manifesta por meio de um tom. Este tom indica quem o disse, permitindo relacioná-lo a uma fonte discursiva e determinar o “corpo do enunciador”, e não do autor efetivo.


Posteriormente, em Novas tendências em análise do discurso, obra publicada originalmente em 1987, Maingueneau reforça que:

O que é dito e o tom como é dito são igualmente importantes e inseparáveis. Eles se impõem àquele que, no seu interior, ocupa um lugar de enunciação, fazendo parte integrante da formação discursiva, ao mesmo título que as outras dimensões da discursividade. (MAINGUENEAU, 1989, p. 45)

O termo tom, no sistema tonal clássico, se refere à nota em relação à qual se constrói uma escala diatônica[1] qualquer e que representa o centro tonal em cujo entorno se produz a tensão e o repouso no qual esse sistema se baseia. Neste sentido, tom é sinônimo de tonalidade. Quando dizemos, por exemplo que uma música está no tom de Dó maior, isso significa que a música é composta em uma escala maior, cuja nota tônica da escala é o Dó natural. Dessa maneira, mo sistema tonal (utilizado pela quase totalidade das músicas) determina que tipos de notas serão utilizadas, fazendo das notas tocadas fora da escala sons dissonantes. Uma seqüência de notas, portanto, define qual delas é a que determina a tonalidade. Alguns dizem que o sistema tonal é tão belo e harmônico porque é seguindo as mesmas proporções matemáticas que o tímpano percebe os sons. De uma maneira semelhante, o tom de um discurso, estabelecem um reconhecimento, não das freqüências sonoras com a vibração do tímpano, mas do enunciatário com o discurso enunciado: aí opera a incorporação.

Parece-nos que a fé em um discurso, a possibilidade de que os sujeitos nele se reconheçam presume que ele esteja associado a uma certa voz (que preferiremos chamar de tom, à medida que seja possível falar do “tom” de um texto do mesmo modo que se fala de uma pessoa). (...) O tom está necessariamente associado a um caráter e a uma corporalidade. (MAINGUENEAU 1997: 46-47).

No ano de 1993, com a publicação, na França, de O contexto da obra literária, Maingueneau reitera a participação da corporalidade na escrita, e já se refere ao tom utilizando diretamente o conceito de etos, definindo-o como “o policiamento tácito do corpo, uma maneira de habitar o espaço social (...) Constitui-se através de um conjunto de representações sociais do corpo ativo em múltiplos domínios.” (MAINGUENEAU, 2001, p. 139). Este policiamento tácito está relacionado ao processo de impedir que as atitudes espontâneas, em dadas circunstâncias, revelem e contradigam a fala no espaço do jogo discursivo. Por outro lado, as representações sociais constituiriam a imagem do enunciador que é produzida coletivamente pela fala de um grupo ou comunidade, ou seja, o estereótipo (termo que será incorporado posteriormente ao inventário de definições de etos segundo Maingueneau).


Em O contexto da obra literária, Maingueneau traz também mais um termo importante para a análise do etos: o anti-ethos. O enunciador constrói em seu texto uma figura que representa o seu oposto. Trata-se da imagem de uma outra corporalidade, constituída em uma cena que é oposta a representação do território da comunidade, ou seja, uma cena que funciona como um “antiespelho”.


Posteriormente, com Análise de textos de comunicação, publicado originalmente em 1993, Maingueneau irá reforçar a idéia de etos relacionando-o à vocalidade e à corporalidade do texto escrito. Mas, nesse livro, o autor traz algumas inovações sobre o estudo do etos. Primeiramente, ele inicia o oitavo capítulo relacionando etos com cena, mais especificamente com a cena englobante, a cena genérica e com a cenografia, associação esta que se apresentará como a tônica de diversos artigos futuros. Além disso, neste livro, Maingueneau já se refere diretamente ao fiador, que, por meio da enunciação, revela a personalidade do enunciador, através da vocalidade que confere um corpo ao texto escrito. O fiador revela tanto uma maneira de dizer quanto uma maneira de ser, relacionadas a uma participação imaginária de uma experiência vivida. No final do capítulo oito (MAINGUENEAU, 2001, p. 102), Maingueneau apresenta uma primeira divisão do conceito de etos, que se sucederá a outras no futuro. O autor divide o corpo em “corpo dito” e “corpo mostrado”. Essa divisão desembocara na distinção entre etos discursivo dito e etos discursivo mostrado.


Com o seu Dicionário de Análise do Discurso, publicado em conjunto com Patrick Charaudeau originalmente em 2002, define-se etos nos seguintes termos:

Ethos - termo emprestado da retórica antiga, o ethos designa a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário. Essa noção foi retomada em ciências da linguagem e, principalmente, em análise do discurso no que se refere às modalidades verbais da apresentação de si na interação verbal. O “ethos” faz parte, como o “logos” e o “pathos”, da trilogia aristotélica dos meios de prova. Adquire em Aristóteles um duplo sentido: por um lado designa as virtudes morais que garantem credibilidade ao orador, tais quais a prudência, a virtude e a benevolência; por outro, comporta uma dimensão social, na medida em que o orador convence ao se exprimir de modo apropriado a seu caráter e a seu tipo social. Nos dois casos trata-se da imagem de si que o orador produz em seu discurso, e não de sua pessoa real.

No final do trecho acima, Maingueneau já anuncia uma distinção que ele tornaria mais explícita no futuro, retomando Ducrot: a distinção entre o Locutor-L (pessoa real) e o Locutor-λ (enunciador), como no artigo Problema de Ethos (MAINGUENEAU, 2006). No texto Ethos, cenografia e incorporação (MAINGUENEAU, 1999), o conceito de etos já se apresenta com o termo “ethos efetivo”, que é divido conforme a figura abaixo:





Figura 1 – Processos discursivos do etos. (MAINGUENEAU, 1999).

Na figura acima podemos identificar uma nova subdivisão do etos: os estereótipos. No texto Problema de Ethos (MAINGUENEAU, 2006), encontramos a expressão “estereótipos de mundos éticos”, que se relacionam com entornos discursivos que trazem consigo expectativas específicas em maneira de etos.


Dessa forma, segundo hipótese de Maingueneau (2005), a organização dos elementos coercitivos de um discurso decorre de uma semântica global: um conjunto de regras que rege todas as dimensões do discurso e que funciona como uma rede de restrições.


Maingueneau trabalha, portanto, a noção de etos, originária da retórica clássica, conforme os preceitos da Análise de Discurso praticada na França. Em sua análise, Maingueneau mudou a localização do etos da pessoa do retor (como entendia Aristóteles em sua Arte Retórica) para o universo do discurso. Nesta nova concepção, o etos atua nos processos de produção de sentido, com o fim de coordenar a adesão dos sujeitos ao discurso, em conjunto com outras instâncias discursivas (como o tema, o tom, os modos de coesão, o vocabulário, etc).


A idéia de etos, portanto, se constitui por umas das diversas características dos discursos analisadas a partir da semântica global, por isso, relacionada diretamente com os processos de adesão dos sujeitos ao discurso. As regras desta semântica global estabelecem, como vimos, previamente o que deve ser dito e o tom exigido para que os enunciados proferidos sejam pertinentes à formação discursivas em que estão inseridos. É uma operação que “faz parte da identidade de um posicionamento discursivo” (MAINGUENEAU, 1999, p. 73).


Neste sentido, o etos opera como um meio através do qual os enunciadores oferecem aos co-enunciadores pistas a partir das quais se torna possível formar uma imagem positivada do sujeito enunciador.


Maingueneau, porém, nos alerta que, segundo o entendimento de Aristóteles, o etos só poderia ser produzido pelo próprio enunciador, e no momento da enunciação. O filósofo grego não considerava que existisse um etos produzido por terceiros nem mesmo um etos pré-discursivo. Neste sentido, buscamos uma base nos autores clássicos para o melhor entendimento do que seria o etos pré-discursivo. Isócrates foi o que melhor nos ofereceu uma explicação.

BIBLIOGRAFIA

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989.
MAINGUENEAU, D. . Elementos de lingüística para o texto literário. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de Souza e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 3ª ed. Campinas, Pontes/UNICAMP. 1989.
MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, R. Imagens de Si no discurso. Trad. Dilson F. da Cruz; Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 1999.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes: 2001.
MAINGUENEAU, D. Problema de ethos. In: Cenas da Enunciação. Curitiba: Criar, 2006.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar, 2005.

[1] Escala Diatônica é uma escala de sete notas composta de cinco tons e dois semitons (tom aqui se entende como sinônimo de nota) em que os semitons estão separados entre si ao máximo possível de distância. Assim, entre cada semitom temos dois ou três tons. Este padrão se repete a cada oitava nota numa seqüência tonal de qualquer escala. A escala diatônica é típica da música ocidental e faz parte da fundação da tradição da música européia. As modernas escalas, a escala maior e a escala menor, são diatônicas, assim como todos os modos tonais da Igreja.

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