Câmara Inversa

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Internacional

Apocalypse Please


Se o título da música do grupo inglês Muse pode parecer um tanto exagerada para caracterizar o que vem acontecendo – e, nesse sentido, pode-se logo imaginar aquela tradicional imagem do velho na esquina, bengala numa mão, cartaz na outra (“É o fim do mundo!”) – tal canção poderia facilmente ser utilizada como trilha sonora para as imagens que preenchem os jornais nesses últimos dias.

Tudo começou com as charges publicadas na Dinamarca que ridicularizavam o profeta islâmico Maomé. Outras se seguiram na Noruega e, posteriormente, em outros países da Europa. Tratam-se de charges em jornais livres de intervenção governamental (o chanceler dinamarquês, inclusive, afirmou não poder se desculpar por elas, porque não tem poder de proferir ordens à imprensa do país). Trata-se do que chamamos de “liberdade de expressão”.

Mas que liberdade é essa? Ao meu ver, trata-se de um conceito muito abstrato, em qualquer sociedade. Quem é mais livre: a mulher que é obrigada a se esconder atrás de um véu ou a que é “obrigada” a passar por tratamentos de beleza e dietas para aparecer na praia no verão? Qual é a maior opressão: aquela ditada por clérigos radicais que acreditam ver nas palavras de Maomé um caminho pra consolidar sua dominação ou o discurso de liberdade que justifica guerras e mascara a opressão de uma forma ainda mais perversa?


De qualquer forma, é impossível fechar os olhos para o que acontece agora. Trata-se de uma crise muito mais profunda do que qualquer guerra, que quase sempre se resume à invasão e conquista; ninguém é capaz de dominar um ponto-de-vista diferente. É uma situação transnacional – vide protestos com diversos mortos no Afeganistão, a incitação à violência no Iraque, o assassinato de um padre por um muçulmano na Turquia, os altos brados governamentais no Irã e na Síria e a “solidariedade” Europa-EUA, inclusive em acusar os primeiro-ministros de Síria e Irã de aproveitar as charges para atiçar suas populações contra o Ocidente.

A acusação americana (proferida pela poodle de estimação do senhor Bush, Condoleeza Rice) tem precedência: o aiatolá Khamenei, o mesmo que vinha rebatendo acusações americanas, semana passada, ao seu programa nuclear, declarou serem as charges uma resposta à eleição do Hamas na Palestina. Não tivessem sido publicadas há quatro meses atrás, ele efetivamente teria um ponto aí. O fato é que, pela primeira vez, talvez depois de séculos (lembrem-se das Cruzadas), temos uma situação de oposição geral Ocidente-Nações islâmicas. Que faz as Guerras do Golfo, Iraque e Afeganistão parecerem um ensaio.

De quem é a culpa? Bem, essa é a parte difícil; vamos sempre cair na dualidade registrada alguns parágrafos acima. Se a bandeira da falsa liberdade e as suas invasões são causas para o efeito revolta, o radicalismo religioso também torna tudo muito complicado. Particularmente, sou adepto do humor anárquico, acho mesmo que situações de quase-constrangimento do espectador, como as do desenho South Park, por exemplo, são engraçadas e devem gozar de liberdade para serem manifestadas. Ao mesmo tempo, quando uma criança provoca a outra e esta, ainda que chore pedidos de que a primeira pare, não é atendida, não cabe aos pais intervir para avisar que já foi suficiente?


Que fique claro que não assumo o lado islâmico da briga. É realmente muito difícil confiar a homens que vivem por valores ditados por uma religião, ou seja, propensos ao fanatismo, um programa nuclear. Sou adepto e defensor do estado laico, porque, acima de tudo, é muito difícil apelar à lógica quando o conjunto de valores usados obedecem cegamente à interpretação de um livro. Se a interpretação mais comum do Alcorão fosse a que o personagem de Omar Sharif profere no filme “Uma Amizade sem Fronteiras”, o diálogo seria muito mais fácil.

Em outro filme, o excepcional documentário “Promessas de um Mundo Novo”, os documentaristas levam dois meninos judeus ao Muro das Lamentações. Um deles se aproxima. O outro fica pra trás: “quando vejo todo esse fanatismo religioso, tenho medo. Essas pessoas me dão medo”. Talvez seja isso que devamos temer: a não-razão, dos dois lados, que pode nos conduzir a uma reedição das Cruzadas. E, dessa vez, o impacto será muito mais profundo.

1 Comments:

  • Na minha opinião, democracia envolve respeito. Se os europeus sabem que para os árabes até mesmo fazer um desenho de Maomé já é algo terrível (pois eles são contra qualquer tipo de imagem desenhada - consideram idolatria), para que fazer isso? E o jornal francês France Soir foi na onda e publicou também a caricatura. Depois, quando cair uma bomba no meio de um parque de diversões de Copenhagen eles vão achar estranho.

    By Blogger Daniel Lopez, at fevereiro 10, 2006 7:57 AM  

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