TV e Construção da Realidade

O sucesso conseguido pela televisão, desde sua origem, está calcado, entre outros fatores, no seu caráter “fantástico”, ou seja, o poder de criar uma realidade particular, um mundo próprio, imaginário e mágico, em que nem sempre vigoram as regras e valores do mundo externo.
Operando através do caráter “mágico” da imaginação (Sartre, 1936), a televisão mediatiza a relação entre fato e espectador, em um processo em que não raro há subjetividade e conotação. Segundo Ernest Gombrich (1969), entre a representação e a realidade externa só há ilusão. É neste contexto que se pode ressaltar também as “hesitações” que acontecem no telejornalismo, em que a forma como as informações são mostradas e organizadas pode produzir um “efeito de real”, mas nem sempre refletir os fatos em sua forma mais consistente.
Eliminando distâncias geográficas e sócio-culturais, a TV pode levar o mundo até a casa do telespectador, permitindo que ele assista, ao vivo, a eventos históricos como guerras e viagens espaciais. Acompanhados por milhões de pessoas, os noticiários são capazes de mobilizar toda a sociedade em torno de movimentos políticos, como uma campanha pela presidência do país. Mas também dão espaço exagerado a fatos irrelevantes, alguns deles ligados a figuras da própria televisão, como o nascimento da filha de uma apresentadora. Mortes de personalidades, por sua vez, fazem com que a cobertura abandone a frieza jornalística para investir na emoção. Afinal, o telejornalismo também precisa contribuir para a conquista de audiência. Desse modo, cada telejornal oferece ao telespectador apenas um “mundo possível”, entre os muitos que poderiam ser mostrados.
Por outro lado, partindo do princípio que a notícia possui características da narrativa, considera-se, aqui, a premissa de que ela também pode produzir efeitos de real, isto é, que é capaz de constituir o real. A partir do momento em que a notícia busca conferir uniformidade aos micro-aspectos do fato, produz-se um enredo, entendido como campo de problemas de uma experiência. Sendo a notícia, portanto, um enunciado ou uma seqüência de enunciados narrativos, torna-se possível a produção de notícias que caminhem em direção ao Fantástico.
Toma-se como Fantástico a definição de Tzvetan Todorov (1939): “um texto que obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados.
Esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e, ao mesmo tempo, a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra.”
Todorov defende ainda que o “fantástico é um caso particular da categoria mais geral da ‘visão ambígua’” (idem, 1939: 39). É na hesitação do leitor-espectador perante a veracidade da informação recebida que reside o Fantástico. Assim, por permitir este posicionamento ambíguo, a televisão aparece como um meio em que o gênero em questão se faz presente amiúde.
Como a mídia elabora sua abordagem dos fatos ocorridos, em um determinado dia, ao redor do mundo? Qual a idéia que a mídia passa ao espectador sobre seu poder de abarcar todos os acontecimentos do dia, e de decidir quais são os mais importantes? Quais os recursos discursivos utilizados pelo telejornal para legitimar seu poder “onisciente”? Qual o impacto social do discurso midiático, através de sua leitura do mundo?
Com frases do tipo “agora você verá o que aconteceu de mais importante no Brasil e no mundo...”, o Jornal Nacional passa a idéia de que possui o poder de analisar TODOS os fatos acontecidos ao redor do planeta. Este poder onisciente remete a ficções como O Aleph, de Jorge Luís Borges; 1984, de George Orwell; e O Panóptico, de Jeremy Bentham.

Em O Aleph, Borges descreve uma esfera de dois ou três centímetros de diâmetro, mas “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, visto de todos os ângulos”. A esfera estava num porão escuro e brilhava, mas nem todos conseguiam ver o universo do Aleph. No pequeno quadrado da televisão, vemos os apresentadores do Jornal Nacional com o globo terrestre a suas costas.
George Orwell, por sua vez, constrói no romance 1984 uma metáfora pessimista do pós-guerra para o futuro da humanidade, dominado pelo totalitarismo. Para garantir a manutenção do Partido, os setores mais importantes da sociedade eram controlados pelas Teletelas, sempre sob a onipresença do Grande Irmão. As teletelas não somente mostravam imagens como monitoravam as pessoas, sendo quase impossível escapar de seu escrutínio. No cenário de o Jornal Nacional, há uma infinidade de telas, onde programações do mundo inteiro são monitorados por incansáveis jornalistas.
Ainda, Jeremy Bentham propôs uma arquitetura para prisões que ficou conhecida como o panóptico, literalmente “ver tudo”. Era uma prisão em que as celas ficavam dispostas de forma circular havendo uma torre no centro, de onde se podia ver todos os presos. Para dizer “agora você verá o que aconteceu de mais importante no Brasil e no mundo”, o emissor deve estar situado na torre central do Panóptico, e as celas compreenderem o mundo inteiro (como em O Aleph).
Assim, a onisciência do telejornalismo consiste em uma ilusão: até o mais amplo dos noticiários transmite um volume restrito de informações – irrisório se comparado, por exemplo, ao número de notícias publicadas por um jornal diário ou por uma revista semanal.
Embora esse processo de seleção seja uma constante do jornalismo, na TV ele aparece de forma mais acentuada, em virtude do tempo escasso. Um bom exercício para mostrar esse aspecto limitante é gravar os telejornais da noite, transmitidos por diferentes emissoras, e compará-los aos jornais do dia seguinte. Todos os telejornais deram as mesmas notícias?
Todas as notícias transmitidas pela TV saíram nos jornais? E quantas notícias relevantes foram publicadas pelos jornais, mas não foram transmitidas pela TV? O noticiário da televisão não esgota a necessidade que temos de conhecer o que acontece à nossa volta – constitui apenas uma das maneiras de fazer isso.
Neste contexto, cabe ainda a pergunta: se nunca tivéssemos visto uma televisão e, de repente, um avião deixasse cair um aparelho em uma pequena vila? Barbara Brenner (1990) nos dá uma visão interessante sobre esta hipótese em seu livro The Magic Box. Em seu conto, todos ao habitantes da vila ficam maravilhados com o estranho aparelho que cai do céu. Rapidamente, os homens esquecem de arar o campo, as mulheres deixam seus afazeres e as crianças faltam as aulas: todos estão grudados na “caixa mágica”. A cidade se torna um caos. Até que um pequeno garoto finalmente desliga a televisão. A vida volta ao normal e os cidadãos percebem que esta pequena caixa tem poderes inestimáveis.
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